quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Refluxos e reflexões

É como se todas as minhas crenças e valores fossem solúveis e jogadas sem cuidado num copo d’água……
Ainda no canto do copo, ao lado do fundo, ficaram os sonhos.
E ainda canto fazendo rodamoinho em água morna, acostumada a correr sempre no mesmo sentido. Pois como? Se pra mim, não faz nenhum sentido deixar-me levar.
Se misturo minha essência nessa indecência moral, sinto-me afogada por meus próprios ideais e mato minhas idéias, minha criação e minha reação.
Não acomodar-me com o igual e a transparência da minha água que, correndo contra o fluxo cuspido do frio cotidiano moderno me induz a remar contra a maré. E me seduz a amar, a derramar o que ainda acredito que nunca deixou de ser e ainda é.
(desabafo)

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

"A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil, delicado e penetrante dos sentimentos. É o mais independente. 

Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto no exato ponto em que foi interrompido. 

Afinidade é não haver tempo mediando a vida. 
É uma vitória do adivinhado sobre o real. 
Do subjetivo para o objetivo. 
Do permanente sobre o passageiro. 
Do básico sobre o superficial. 
Ter afinidade é muito raro. 

Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar. 
Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois que as pessoas deixaram de estar juntas. 
O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples e claro diante de alguém com quem você tem afinidade. 

Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos fatos que impressionam, comovem ou mobilizam. 
É ficar conversando sem trocar palavras. 
É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento. 

Afinidade é sentir com. Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo. 
Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado. 
Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios. 

Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo. 
É olhar e perceber. É mais calar do que falar, ou, quando é falar, jamais explicar: apenas afirmar. 

Afinidade é jamais sentir por. 
Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo. 
Mas quem sente com, avalia sem se contaminar. 
Compreende sem ocupar o lugar do outro. 
Aceita para poder questionar. Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar. 

Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças. 
É conversar no silêncio, tanto nas possibilidades exercidas quanto das impossibilidade vividas. 

Afinidade é retomar a relação no ponto em que parou sem lamentar o tempo de separação. 
Porque tempo e separação nunca existiram. 
Foram apenas oportunidades dadas (tiradas) pela vida, para que a maturação comum pudesse se dar. 
E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais a expressão do outro sob a forma ampliada do eu individual aprimorado." 

Artur da Távola 


É meio-dia no meu peito.
E o sol do seu sorriso faz-me inteira.
Faz de mim uma flecha certeira em direção ao alvo em movimento.
Passa o dia todo com passos lentos
Passo todo dia esperando sua chegada
e no aconchego da rotina aprendo a aguardar sua estada
és feito de sonhos guardados, esperanças perdidas, suspiros empoeirados
que, na estrada da vida, de tão altos e quentes, brincaram de me iludir ao longo dos anos e dos enganos
que, de tão esperados, fingiam ser conto de fadas, usando máscaras disfarçadas
adormecendo meu desejo lucido e insano
Eu era uma flor no seu jardim de pensamento
ja existia sem rosto, sem dono, sem ponto e sem acento
um girassol a buscar calor nos braços do tempo
e, de tocar o intocável fomos costurando nosso canto
como se, no fechar dos olhos, nosso encontro misturado ao infinito
narrasse um conto em realidade, tão sagrado e tão bonito
imortalizando nossas vidas em rima, em melodia
fazendo-me sua obra acababa e uma afinada poesia
O sol invade então a extensão de meus dedos, que,
sutilmente acariciam a face das estrelas
o sol agora habita meus lábios e sua musica,que ainda sem estrofe
ja começa a trilhar um norte atraves de meu rosto,
ja encerra todo meu universo esculpido de realidade,
ja mascara minha idade quando brinco de ser menina diante de força tamanha, estranha e tão conhecida.
sinto-me plena de mim, sentada a beira da minha esquina onde esperava sua chegada
É meia-noite na minha espera
somos agora noite e dia da mesma verdade
metade do mesmo ser espalhados em esperança
a semelhança e a certeza misturadas em vontade
a sempre sensação de sanidade ao sentir que...
...eu ja te conhecia, só não sabia seu nome.




segunda-feira, 4 de outubro de 2010

“O Arco e a Lira” de Octavio Paz.


INTRODUÇÃO
A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não-dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Idéia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular c minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!

Como não reconhecer em cada uma dessas fórmulas o poeta que as justifica e que, ao encarná-las, lhes dá vida? Expressões de algo vivido e padecido, não temos outro remédio senão aderirmos a elas - condenados a abandonar a primeira pela segunda e esta pela seguinte. Sua própria autenticidade mostra que a experiência que justifica cada um desses conceitos os transcende. Será preciso, portanto, interrogar os testemunhos diretos da experiência poética. A unidade da poesia só pode ser apreendida através do trato desnudo com o poema.

Um poema é uma obra. A poesia se polariza, se congrega c se isola num produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente. É lícito perguntar ao poema pelo ser da poesia, se deixamos de concebê-lo como uma forma capaz de se encher com qualquer conteúdo. O poema não é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem.

O poema é um organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. Forma e substância são a mesma coisa. Mal desviamos os olhos do poético para fixá-los no poema, aparece-nos a multiplicidade de formas que assume esse ser que pensávamos único. Como nos apoderarmos da poesia se cada poema se mostra como algo diferente e irredutível?

A forma mais alta da prosa é o discurso, no sentido estrito dessa palavra. No discurso as palavras aspiram a se constituir em significado unívoco. Esse trabalho implica reflexão e análise. Ao mesmo tempo introduz um ideal inatingível, já que a palavra se nega a ser mero conceito, significado sem outra coisa mais. Cada palavra – à parte suas propriedades físicas - encerra uma pluralidade de sentidos. Assim, a atividade do prosador se exerce contra a natureza própria da palavra.

A palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas entranhas, todos os seus sentidos e alusões, como um fruto maduro ou como um foguete no momento de explodir no céu. O poeta põe em liberdade sua matéria. O prosador aprisiona-a.

O poema, sem deixar de ser palavra e história, transcende a história. Sob condição de examinar com mais atenção em que consiste esse ultrapassar a história, podemos concluir que a plural idade de poemas não nega, antes afirma, a unidade da poesia.

Cada poema é único. Em cada obra lateja, com maior ou menor intensidade, toda a poesia. Portanto, a leitura de um só poema nos revelará, com maior certeza do que qualquer investigação histórica ou filológica, o que é a poesia. Mas a experiência do poema - sua recriação através da leitura ou da recitação - também ostenta uma desconcertante pluralidade e heterogenia. Quase sempre a leitura se apresenta como a revelação de algo alheio à poesia propriamente dita.

Para alguns o poema é a experiência do abandono; para outros, do rigor. Cada leitor procura algo no poema. E não é insólito que o encontre: já o trazia dentro de si.

Todos já fomos crianças. Todos já amamos. O amor é um estado de reunião e participação aberto aos homens: no ato amoroso a consciência é como a onda que, vencido o obstáculo, antes de se desmanchar, ergue-se numa plenitude na qual tudo - forma e movimento, impulso para cima e força da gravidade - alcança um equilíbrio sem apoio, sustentado em si mesmo. Quietude do movimento. E do mesmo modo que através de um corpo amado entrevemos uma vida mais plena, mais vida que a vida, através do poema vislumbramos o raio fixo da poesia. Esse instante contém todos os instantes. Sem deixar de fluir, o tempo se detém, repleto de si.

Objeto magnético, secreto lugar de encontro de forças contrárias, graças ao poema podemos chegar à experiência poética. O poema é uma possibilidade aberta a todos os homens, qualquer que seja seu temperamento, seu ânimo ou sua disposição. No entanto, o poema não é senão isto: possibilidade, algo que só se anima ao contacto dc um leitor ou de um ouvinte. Há uma característica comum a todos os poemas, sem a qual nunca seriam poesia: a participação. Cada vez que o leitor revive realmente o poema, atinge um estado que podemos, na verdade, chamar de poético. A experiência pode adotar esta ou aquela forma, mas é sempre um ir além de si, um romper os muros temporais, para ser outro. Tal como a criação poética, a experiência do poema se dá na história, é história e, ao mesmo tempo, nega a história.

O poema é mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, encarna-se num momento. A sucessão se converte em presente puro, manancial que se alimenta a si próprio e transmuta o homem. A leitura do poema mostra grande semelhança com a criação poética. O poeta cria imagens, poemas; o poema faz do leitor imagem, poesia.

E ainda guardamos viva a sensação de alguns minutos de tal maneira plenos que se transformaram em tempo transbordado, maré alta que rompeu os diques da sucessão temporal. Pois o poema é via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas originais da existência. A poesia não é nada senão tempo, ritmo perpetuamente criador.

“O Arco e a Lira” de Octavio Paz. Tradução de Olga Savary. Ed. Nova Fronteira, RJ, 1982. (Coleção Logos)